quinta-feira, setembro 21, 2006

Capítulo 4 – Explicação e desenvolvimento

O Hinyoísmo é uma religião da qual cabe agora falar. A primeira dica que devemos seguir para a construção de um panorama dessa doutrina é o nome do templo em que o monge sem nome de nossa história habitava até o momento do incêndio. Acariciara O Nada Com Seus Frios Cílios.
Acariciara” porque é baseada em uma filosofia pessimista quanto à possibilidade de uma real comunhão com algum Absoluto. “O Nada” porque é baseada em uma filosofia pessimista quanto à existência de qualquer coisa. “Frios” porque é baseada em uma filosofia pessimista quanto ao valor das emoções e paixões humanas (e talvez seja irônico que o templo tenha, justamente, queimado). “Cílios” porque para acariciar qualquer coisa com eles é necessário fechar os olhos, o que mostra que é baseada em uma filosofia pessimista quanto à confiabilidade dos sentidos humanos.
Enfim, é uma religião pessimista, inventada por alguém chamado Hinyô, cujo nome não é uma simples palavra mas um nome mesmo, o que talvez indique que ele viveu em um outro tempo ou universo. O que se sabe de sua vida é apenas que desenvolveu toda sua filosofia escrita no livro da doutrina (o “Por quê?”, que dá à religião um outro nome, o “Porqueísmo”, pouco usado por fazer alguns desavisados pensarem em alguma relação indesejável entre o hinyoísmo e os suínos) logo após ser dispensado por sua namorada.
Na manhã seguinte ao capítulo anterior, continuando a história, o monge acordará bem cedo e realizará os rituais próprios a seu estágio monástico (o mais baixo, diremos apenas que tais protocolos incluem atos indignos e dolorosos como a contemplação – por uma hora – do próprio traseiro com o intuito de alcançar a consciência do pouco valor de qualquer coisa e, principalmente, um torcicolo). Então sairá para procurar comida não-carbonizada.
O mercado da cidade ficava em seu centro, de modo que ele terá de andar um pouco (mesmo a cidade sendo pequena), passando pelas muralhas cobertas de fuligem, para chegar ao campo. Logo avistará um pequeno animal roendo a raiz de uma grande árvore. Bem, os monges hinyoístas não são vegetarianos (pois não vêm muita importância mesmo na natureza), mas nem por isso eles mostrariam muito gosto por comer ratos. No entanto, na situação em que se encontrará (e o leitor pode comprovar isto com um simples experimento consistindo em queimar a própria casa, assassinar seus familiares e passar um dia inteiro dormindo ao relento e comendo apenas restos chamuscados), a fome parecerá falar mais alto. Ao menos é o que ele vai entender dos roncos de seu estômago.
Saltará sobre o roedor, que tentará fugir. Uma perseguição terá lugar, até o momento do triunfo do homem sobre a natureza, como tem de ser. O monge será o único que nesse dia conseguirá fazer uma fogueira para assar sua comida, pois todos os outros jovens manterão ainda uma aversão pelo fogo.
Retirará as vestes monacais e banhar-se-á num rio que há por perto. Ouvirá um barulho atrás de si, mas nada verá quando se voltar. Sairá do rio e deitar-se-á nu sobre a grama clara para secar à luz do sol. Livre da autoridade dos senhores do templo, da tirania de seu companheiro de quarto, da solidão intensa que só um quarto pequeno fechado pode causar, sentir-se-á até fugir um pouco ao pessimismo que sempre advogara em mantras e orações. Apreciará até a boa sensação dos raios solares em seu sexo (palavra proibida até então).
Voltará ao mercado, sem saber bem por quê. Um monge hinyoísta aprende a ser sozinho.
Mas o templo ardeu com todos os outros ascetas – como poderá ele dizer-se monge de uma religião extinta?

domingo, setembro 10, 2006

Capítulo 3 – Pra começar

Na realidade, não é tão importante assim o contexto político descrito no capítulo anterior, pois a história começará com toda a cidade pegando fogo, e no incêndio morrerão Chamado e a maioria das pessoas que realmente se importavam com a situação governamental de Seja Feliz, Pequeno Irmão. A cidade desaparecerá, e ninguém jamais pensará em reconstruí-la – era de fato muito insignificante.
Obviamente nenhum dos jovens dos quais falei no último capítulo terá o mesmo trágico destino, afinal é para isso que eu os criei.
Perdão acordará com o cheiro da fumaça e fugirá salvando Farsa.
Aparecimento acordará porque sempre acorda no mesmo ponto de seu sonho, e conseguirá sair da cidade de modo razoavelmente calmo.
Verdadeiro demorará para despertar, e não conseguirá deixar sua casa sem algumas sérias queimaduras.
O monge sem nome tem o sono leve, e logo perceberá o perigo – correrá, no entanto, o risco de morrer no incêndio para ter o prazer de ver seu companheiro de quarto queimando.
Traição quem sabe apagará o fogo de seus aposentos com suas lágrimas infindas.
O vulto armado jogar-se-á no rio.
Amarelo assistirá sem nenhuma tristeza à destruição de seu mural pelo fogo. Saltará da cama como se para um belo dia de feriado, deslizará dançante para fora da casa.
Resistível acordará de um sonho estranho, perceberá o perigo e fugindo errará a porta e entrará na dispensa escura, causando a queda de diversos mantimentos sobre sua cabeça. Voltará atrás e acertará a porta, para fugir ao incêndio andará muitas vezes nos círculos das ruas da cidade, sempre voltando à frente da sua casa sem saber por quê.
A chuva apagará as pequenas chamas restantes. Se cair.
Os jovens ficarão acordados, cada um em um canto da cidade, cada um o quanto agüentar, lamentando perdas e mortes, buscando acordar da realidade terrível, chorando para não ter de lidar racionalmente com a situação. Quando dormirem, não se lembrarão de colocar a cabeça para a direção própria.
Mas
Aparecimento continuará sonhando seu mesmo sonho de sempre, Amarelo imaginará seu mural, Traição chorará ainda, o monge continuará sem nome, o vulto agarrado à faca, Perdão cobrindo Farsa, Verdadeiro terá ainda o corpo dolorido, Resistível dormirá sentado sobre as ruínas de sua casa, da qual não conseguiu se afastar – devido a sua falta de senso de direção.

Acordarão logo mais, e então terão de se encontrar de alguma forma para que a história possa prosseguir, e não poderia ser outra – em se tratando de jovens que acabaram de acordar depois de verem arder toda a sua vida anterior – que a busca por comida. Irão ao grande mercado da cidade (um exagero, na verdade deveria se chamar médio mercado da cidade, mas creio que todos possamos entender o por quê de não lhe nomearem assim). Encontrarão tudo queimado, suspeitarão de que os outros jovens que estão por ali roubaram para si toda a comida. O vulto – que à luz do dia não é mais um vulto, mas um jovem alto, de cabelos escuros que vão até seu ombro largo, de nariz pontudo e olhar desconfiado – preparará sua faca para uma eventual necessidade. A fumaça ainda traz lágrimas aos olhos.
Nenhum abordará o outro, nenhum tentará qualquer forma de comunicação nesse momento primeiro. Ficarão cada um consigo mesmo (exceto
Perdão e Farsa, ou talvez mesmo eles), comendo o que de menos carbonizado puderem encontrar, descansando mais um pouco, incapazes de de fato pensar no que significava a destruição da cidade para si. Amarelo usará, talvez, o carvão para pintar em seu corpo imagens da perda – ou do ganho do Nada. O monge realizará maquinalmente os rituais que aprendeu.
No entanto eles não deixarão o mercado destruído. A noite cairá e cada um encontrará um lugar para se acomodar. Só
Resistível ficará acordado novamente até o nascer do sol, brincando com as cinzas como se fossem fantasmas – fantasmas brincalhões ou furiosos ou melancólicos, que não puderam entrar no paraíso mas não estão nem aí.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Capítulo 2 - Personagens

O primeiro desses jovens chamar-se-á Resistível. Encontrá-lo-emos no momento em que ele estiver saindo do banho e perceber que já tomou banho essa noite. Impassível, irá dormir, numa cama virada de cabeça para o sul, na pequena casa Cobria-Me Os Pés Com Suas Mãos Macias.
O segundo jovem está, no mesmo momento, fazendo flexões em seu quarto, treinando para que um dia tenha completo domínio de seu corpo. Não sabe exatamente para que usará a capacidade que procura ganhar, mas crê que será algo glorioso.
Verdadeiro dormirá de cabeça para o norte.
De cabeça para o leste dorme a menina
Aparecimento, em uma casa de riquezas e tamanho médios na rua Desembainhou Sua Espada Cantante Num Átimo. No momento, ela dorme, dorme como todos os outros, e sonha o que sonha todas as noites: que o mar invade o continente e chega até a porta de sua casa, e então chega num barco uma mulher fria e silenciosa que a leva para além do oceano.
Para o oeste está a cabeça do melancólico
Traição. Esse nome lhe foi dado porque nasceu no dia em que sua mãe descobriu que o pai possuía, numa cidade vizinha, um harém de trinta rapazes estrangeiros. O garoto não dorme, no entanto, mas chora, sem soluçar, apenas deixando escorrer as lágrimas para seu travesseiro.

Em
Seja Feliz, Pequeno Irmão só é permitido dormir com a cabeça virada para os pontos cardeais aqueles cujas famílias apoiaram desde o início o Estado revolucionário do regente Chamado, o arquieubenindubitável. Aqueles que aderiram ao regime apenas quando da solidificação deste na Batalha Dos Mil Contra Um (que, na verdade, não foi uma batalha, mas sim um exército armado matando em praça pública o senil bisavô de cento e quatorze anos do antigo regente, Pequeno, o transavantajado que já fugira da cidade há muito) são obrigados a dormir com a cabeça virada para os pontos colaterais. E aqui encontramos mais quatro jovens.
Para o nordeste: a bela
Farsa, de maneiras delicadas e muda, que vive com seu tio Hoje, um comerciante que cuida da sobrinha esperando vender sua virgindade para quem der o melhor lance assim que ela completar dezenove anos.
Mal sabe ele que sua inocência já lhe foi roubada por
Perdão, o menino de cabeça lenta que Hoje contratou para entregar mercadorias aos clientes que moram em bairros pobres e perigosos. Perdão dorme com a cabeça para o sudoeste, sozinho numa casa, pois quando tinha onze anos (há cinco anos, portanto) assassinou a facadas sua mãe quando esta se recusou a ir para a cama com o filho.
A garota
Amarelo dorme com a cabeça levantada por um grande travesseiro voltada para o noroeste, olhando para a parede sudeste, na qual pintou a imagem de uma canoa num grande lago. Dentro da canoa, um pássaro azul-claro de asas abertas, de costas para a menina, que olhará por mais um minuto e cairá no sono.
Não tem nome o garoto cuja cabeça adormecida está para o sudeste. Renunciou à palavra pela qual lhe chamavam seus conhecidos no momento em que entrou pelo portal do templo
Acariciara O Nada Com Seus Frios Cílios, decidido a tornar-se um monge hinyoísta. Na verdade, já a esqueceu. Divide o quarto com outro jovem monge, o qual força violentamente o monge que nos interessa a fazer suas tarefas monásticas.

Àqueles que jamais apoiaram o governo chamadista me parece que é melhor não fechar os olhos (ao menos àqueles que sobraram). Desses, descrevo por hora apenas um vulto que, a essa hora tardia, caminha próximo ao porto com uma faca na mão, que treme.

quinta-feira, setembro 07, 2006

Capítulo 1 – Proposta

Então eu vou escrever uma história, porque eu quero e também porque eu devo isso a mim mesmo. Eu quero que seja uma história de mundo-diferente, do tipo de história em que você passa grande parte do tempo de criação inventando nomes pras coisas e pessoas. Mas eu não quero planejar nada, porque geralmente quando eu planejo minhas histórias eu o faço com tantos detalhes que escrever a história já não tem mais graça (principalmente porque eu acabo não mostrando pra ninguém), embora não tenha sido isso que tenha acontecido com o romance que eu estava escrevendo, que eu planejei inteiro mas realmente tinha (tenho) prazer de escrever. Acho que era difícil demais e didático demais.
Quero agora escrever uma história sem moral, sem função além de si mesma. Uma história fantástica. Sei que essa coisa de fantasia é meio romântica, um tanto escapista, mas acho que eu sou escapista mesmo, e tenho certeza de que sou romântico.
Mas na minha história não haverá elfos. (Única coisa planejada, prometo.)
Haverá, sim, muitos jovens em busca de algo, mesmo sem saberem o que é esse algo ou mesmo que estão a buscá-lo. E eles moram na cidade (pois isso de aldeiazinha é muito chato) de
Seja Feliz, Pequeno Irmão.
Mas os nomes deles não vão ser estranhos e impronunciáveis (nada contra). Serão palavras. O que não quer dizer que as personagens serão como os sete anões ou que a história é uma alegoria. É que nesse mundo os pais dão palavras como nomes para seus filhos, mesmo que na maioria das vezes as crianças acabem não combinando com seus próprios nomes.
Apesar de ser uma história dessas fantásticas, não vai ser ingênua e boba. Nela estarão representados os piores vícios de todo homem, que parece que muitas vezes acabam sendo enormes virtudes, acabando de vez com todo e qualquer resquício de moralismo que guardemos.